1947 – Esta é a única data especificamente exata, pois foi quando comecei a aprender Jiu-jitsu com meu pai; todas as outras são aproximadas. Uma das primeiras coisas que aprendi sobre Jiu-jitsu, é que ele não tinha regras. Por exemplo: para abrir a chave de rim (ou a guarda), enfiávamos os cotovelos nas coxas do adversário sem precisar segurar em alguma parte do kimono, como é obrigatório hoje em dia. Por outro lado, lutávamos muito em pé.
1950 – Por esta época, havia muito poucos professores de Jiu-jitsu no Brasil. A maioria era descendente direta do Conde Koma ou da primeira geração por ele formada. Destarte, apenas meia dúzia de professores podia conferir uma faixa preta a algum de seus pupilos. Não havia federações nem uma regulamentação específica para a outorga de faixas.
1954 – Os atemis estavam proscritos, mas ainda eram usados os sinapismos – aqueles tapas com a mão aberta nas costas suadas do adversário – e outros golpes traumáticos, nas academias pequenas ou de alguma cidade do interior, onde velhos professores ensinavam o Jiu-jitsu tradicional de Koma. Sem contato ou supervisão daqueles que estavam tomando ou tinham tomado nas mãos a direção da Arte Suave no país, cada um daqueles professores ensinava à sua moda, da maneira que tinha aprendido, sem se importar com as regras e outros quesitos que estavam sendo criados nos grandes centros, principalmente no Rio.
1955 – Pelo menos no sul do país, usávamos ainda chaves de dedos e de pulso. Estranhei quando me disseram que isso estava sendo proibido na região sudeste, mas como todos sabiam que o maior centro de Jiu-jitsu era o Rio, era mais que natural que começassem a impor regras criadas lá mesmo.
1956 – Eu nunca fui faixa azul. Fui branca, amarela, laranja, vermelha, verde, roxa, marrom e preta. Na região sul, no meu tempo, as faixas eram essas. Mesmo assim, não eram todos os professores que adotavam esta seqüência; havia várias outras. Algum tempo depois – não sei especificar quando – foi adotado um novo sistema, que incluía a faixa azul em substituição às quatro primeiras coloridas, pois era assim que se procedia nos grandes centros. Isto vigora até hoje.
1957 – A esta altura, eu estava aprendendo alguns pinçamentos, mas foi-me confiado que eles eram secretos. Comecei, então, a sondar todos os praticantes que podia, mas a maioria deles não os conhecia. Apenas alguns admitiram saber um ou outro, mas afirmaram que essas técnicas eram praticamente desconhecidas para a maioria dos professores da época. Isto continua ocorrendo até hoje.
1958 – O golpe conhecido como uti-gesa-gatame (espécie de chave de braço sobre a coxa) era aplicado concomitantemente a uma pressão do polegar sob o lóbulo da orelha do adversário. Entretanto, enquanto essa técnica era largamente utilizada no sul do país, chegou a notícia de que, em outras localidades, o Jiu-jitsu estava sendo encarado como esporte, e a pressão com o polegar era deselegante e antiesportiva, e estava proibida.
1959 – Embora radicado em Porto Alegre, eu viajava bastante, pois tinha parentes no Rio e em São Paulo. À exceção de Hemetério, eu não conhecia lutadores ou academias em São Paulo; só alguns praticantes no Rio. Mas, mesmo assim, inteirei-me de que, nestas cidades, quase não se lutava mais em pé; somente alguns lutadores tentavam derrubar seus adversários com projeções clássicas, enquanto a grande maioria apenas puxava seu oponente para o tatame. O Jiu-jitsu estava sendo mutilado, e transformando-se, de forma paulatina (ou célere, talvez), numa luta exclusivamente de chão.
1960 – Neste ano, eu já era faixa preta. Aprendi, então, estrangulamentos nervosos; três, se não me engano. Como eu queria saber mais, insinuei-me entre os professores que conhecera, para aprender mais alguns. Qual não foi minha surpresa, no entanto, ao constatar que nenhum deles sabia sequer o que era isso. Até hoje, sei de apenas um professor que detém esse conhecimento – o prof. Marinho, da Academia Atitude, em São Paulo – embora não possa dizer quantos ou quais ele sabe.
1961 – Apesar de regularmente visitar São Paulo e Rio, eu não conhecia academias nem frequentava campeonatos nestas cidades; apenas conhecia algumas pessoas que praticavam Jiu-jitsu: uns poucos professores e alunos. Após radicar-me em São Paulo, fiquei sabendo que os torneios – pelo menos, aqueles da região sudeste – muitas vezes eram decididos por pontos. Para mim, na época, isso era uma novidade espantosa, pois eu estava acostumado a um Jiu-jitsu sem regras, no qual tudo era permitido, à exceção de mordidas, dedos nos olhos e pancadas nos testículos. Isso era antiético, claro. Consternado, verifiquei que a Arte Suave fora transformada em esporte; mas como eu não tinha nada a ver com isso, continuei lutando e comecei a ensinar da forma que havia aprendido. Faço isso até hoje: o Jiu-jitsu Arataba não obedece a regras nem considera pontos ou qualquer outra coisa que o valha. Mas, em geral, a modificação foi aceita e concretizada. Não temos nada com isso. Apenas estou fazendo uma análise das modificações do Jiu-jitsu, e não uma crítica ou censura.
1978 – Por esta ocasião, a chave de rim praticamente não era mais usada. Aliás, parece-me que há muito havia sido banida. Não sei dizer ao certo, pois minha filosofia era manter o Jiu-jitsu intocado, tanto que não introduzi modificação alguma naquilo que aprendera e me propusera a ensinar. A maioria dos lutadores preferia manter os adversários dentro da guarda, que nada mais é do que uma espécie de chave de rim sem apertar. Concordo que esta posição trazia comodidade ao ataque e proporcionava à luta um desenrolar mais longo e interessante do que haveria se fosse somente usada a chave de rim. Mas a verdade é que a chave de rim foi excluída das lutas, e até bem recentemente foi alvo de debates sobre a validade da sua utilização.
1984 – Não sei dizer como a coisa era feita no Rio, mas como em São Paulo, até então, não tinham sido fundadas federações, as faixas ainda eram concedidas por professores. Inclusive as pretas. A outorga de faixas não obedecia (como até hoje não obedece) a nenhum critério pré-estabelecido oficialmente. O Jiu-jitsu estava em franca decadência, o que se podia constatar através de qualquer conversa com praticantes ou qualquer pessoa ligada às Artes Marciais. Tenho a impressão de que a derrocada se deveu ao falecimento do mestre Octávio de Almeida (pai), que era, nessa ocasião, um dos maiores se não o maior expoente técnico do Jiu-jitsu competitivo. Todavia, o título de professor já era encarado com um pouco mais de seriedade. Não era qualquer garoto inexperiente que podia dar aulas, como acontece atualmente. Naquela época, os professores eram mais velhos e, pelo menos, aparentemente mais competentes. Havia uma certa hombridade, ao lado da decência de, pelo menos, possuir um certo cabedal de conhecimento para se intitular professor e ensinar Jiu-jitsu.
1990 – Apesar de aprenderem um Jiu-jitsu não-competitivo e sem regras, alguns de meus alunos me pressionaram para levá-los a participar de um campeonato. Acedi ao pedido por achar que seria interessante poderem lutar com adversários completamente estranhos e sob condições totalmente diferentes daquelas a que estavam acostumados. Foi assim que entrei em contato com Moisés Muradi e Octavinho de Almeida, ambos renomados professores, que se tornaram meus amigos. Pessoalmente, percebi que Moisés se esforçava freneticamente para resgatar e reerguer o Jiu-jitsu, e que Octavinho procurava seguir as pegadas do pai. Pena que se tratava apenas do JJ esportivo. Pareceu-me, na época, que a finalidade precípua numa luta era pontuar e executar artifícios que levassem a isso, tanto que no jargão também da época, falava-se do jogo efetuado pelos competidores.
Participamos, então, de vários torneios, os quais me deram a noção de como era encarado o Jiu-jitsu esportivo, o qual eu honestamente não conhecia. Havia golpes que eram terminantemente proibidos, como chaves de torção (que eram conhecidas), e vários outros (só por serem desconhecidos). Fui convidado, então, para participar de algumas reuniões, nas quais – entre outros itens – se debatia a proibição de determinados golpes. Chaves de rim e de calcanhar sempre estiveram na berlinda. Falava-se, também, de outros golpes, mas eram sempre os mesmos, o que denunciava o reduzido número de golpes conhecidos e utilizados.
1991 – Acho que foi neste ano que fui com meu amigo Moisés Muradi, participar de uma reunião no Rio, com representantes da Confederação Brasileira e da Liga Brasileira de Jiu-jitsu. Era uma reunião de caráter nacional, e lembro que foi comentado estarem presentes quase todos os faixas pretas professores do Brasil, que, na sua totalidade, perfaziam 64. É lógico que deveria haver alguns (ou muitos), que escapavam à contagem oficial, mas, evidentemente, era óbvio que seu número era muito pequeno. Vários professores daqui de São Paulo, que eu mesmo conhecia, não tinham participado da reunião, o que me fazia raciocinar que os aproximadamente quarenta presentes, tinham mais de duas dúzias de colegas ausentes. Mas, pelos comentários, o número de professores em todo o país era deveras reduzido. Dava para perceber isto pela grande quantidade de alunos que todos nós tínhamos na época, diferentemente do que se constata, hoje em dia, até mesmo nas grandes academias, principalmente daqui de São Paulo.
1993 – Minha amizade com vários professores levou-me a comparecer a torneios realizados em várias cidades do Estado, mesmo que não fosse para levar alunos para competir. Foi assim que verifiquei estarem usando mais uma novidade para arbitrar as lutas: apareceram as combatividades e vantagens. Embora não tivessem o valor fracionado dos pontos, serviam para desempatar uma luta e determinar um vencedor através de um critério muito subjetivo.
1994 – Creio que, neste ano, já estava fundada a Federação Paulista de Jiu-jitsu, por Moisés Muradi e Waldomiro Perez Júnior. Participei da reunião de fundação (votando em aberto em Moisés e Júnior), achando muito estranho o aparecimento e a presença de vários jovens-faixas-pretas-professores-votantes, completamente desconhecidos para mim e para a maioria dos professores presentes. Alguns dias depois, constatei a existência de uma feroz dissidência, que começara já no exato momento da solenidade de fundação.
Ainda em 1994, a Confederação Brasileira de Jiu-jitsu resolveu regularizar e escalonar os faixas pretas existentes. Não sei como foi feito no resto do Brasil; mas em São Paulo, os delegados da Confederação pesquisaram e verificaram o tempo de formação de cada um, e outorgaram as respectivas faixas pretas e concernentes graus. O sistema utilizado pela Confederação e demais Federações ainda é semelhante ao utilizado por escolas públicas, onde a aprovação é automática. O lutador faixa preta vai recebendo os graus à medida que o tempo passa, sem precisar fazer exames técnicos, demonstrar conhecimentos especiais ou realizar atos de benemerência, como é necessário e obrigatório acontecer nas outras artes marciais em todo o mundo.
Estas algumas de minhas lembranças. O Jiu-jitsu mudou bastante nos últimos 60 anos. Entretanto, acredito que nem todos os professores – principalmente alguns antigos – tenham assimilado as mudanças. Pessoalmente, eu não as assimilei nem a elas aderi. Mas não foi por considerá-las ruins ou erradas. Mudanças são mudanças, apenas isso. Muda quem quer. Talvez as transformações por que passou o Jiu-jitsu tenham sido naturais ou fruto de uma simples evolução. Não critico nem condeno, mas respeito. Se não segui as regras que foram estabelecidas – e aqui falo por mim e por meus alunos -, foi porque sempre amei o Jiu-jitsu na forma que o conheci há 60 anos atrás; porque talvez minha filosofia não me permitisse mudança de paradigma; ou porque eu não tivesse um contato mais estreito com o restante do mundo abrangido pela Arte Suave. Talvez tenha sido ostracismo. Talvez. Mas, mesmo assim, creio que a Arataba seja a escola que representa uma opção diferente, mas válida, para quem quer lutar e praticar Jiu-jitsu como um estilo de vida.
por mestre Paulo Pirondi
Faixa Coral 8º grau de Jiu-jitsu.
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